Café “confuso”: florada dupla expõe o peso da seca e da chuva fora de hora
Seca prolongada seguida de chuva fora de época fez muitos cafezais do Sudeste florescerem duas vezes, criando um cenário bonito nas lavouras, mas que pode atrapalhar a colheita, derrubar a qualidade dos grãos e pressionar preços futuros.

Quem passou por lavouras de café no Sudeste nas últimas semanas pode ter ficado encantado: pés carregados de flores brancas outra vez, mesmo depois de já terem florido no início da primavera. Para quem olha de fora, é quase uma cena de cartão-postal. Para quem vive do café, porém, o sentimento é outro: preocupação.

A sequência de estiagem prolongada em outubro, seguida de chuvas mais intensas e irregulares em novembro, “enganou” muitas plantas. Primeiro, a seca estimulou a florada típica da primavera.
O resultado é um cafezal bonito, mas com grande chance de ter grãos em diferentes estágios de maturação na mesma área, um verdadeiro quebra-cabeça na hora da colheita e um risco concreto à qualidade da bebida que chega à xícara.
Quando o cafezal “acha” que é primavera duas vezes
Para entender o fenômeno, vale lembrar que o café tem um “relógio interno” muito ligado à água. Em condições normais, a planta passa por um período de seca relativa, entra em repouso e, quando chegam as primeiras chuvas da primavera, recebe o sinal de que é hora de florescer. As gemas que estavam “adormecidas” explodem em flores, dando início ao ciclo produtivo.

Neste ano, porém, muitas áreas do Sudeste viveram uma espécie de montanha-russa hídrica. Houve falta de chuva por mais tempo que o esperado, seguida por pancadas irregulares e choques de temperatura.
Daí a florada dupla: parte dos ramos já com chumbinhos se desenvolvendo e, logo ao lado, flores recém-abertas, perfumando o cafezal fora de época.
O desafio da maturação desigual
Na teoria, mais flores poderiam significar mais produção. Na prática, não é bem assim. Quando o cafezal apresenta grãos em vários estágios de desenvolvimento, o produtor enfrenta uma série de complicações no campo e no terreiro. Em vez de uma colheita mais concentrada, ele precisa conviver com talhões cheios de frutos verdes, cerejas maduras e grãos passas ao mesmo tempo.
Entre os principais impactos dessa “safra desencontrada”, estão:
- aumento do número de passadas na lavoura, elevando custo de mão de obra;
- maior risco de derrubar frutos ainda verdes durante a colheita mecânica;
- dificuldade de separar lotes por grau de maturação, prejudicando a qualidade;
- mais chances de fermentação indesejada e defeitos na secagem, afetando o sabor.
Tudo isso pesa no bolso. Cafés especiais, que exigem uniformidade e cuidado extremo, são os mais vulneráveis: alguns grãos maduros demais ou verdes no meio do lote já são suficientes para derrubar notas sensoriais.
Clima instável e o dia a dia de quem vive do café
O episódio da florada dupla é, em essência, um sinal de alerta sobre o clima que o produtor de café terá pela frente. Seca mais prolongada em um ano, chuva concentrada em outro, calor em momentos críticos: a variabilidade climática está impondo novos desafios a uma cultura que já é exigente por natureza.
No fim das contas, o cafezal “confuso” é um retrato fiel de um mundo em mudança. Se por um lado a florada dupla rende fotos bonitas e um perfume inesperado em pleno novembro, por outro escancara a necessidade de olhar para o clima com ainda mais atenção.
Entender por que as plantas responderam assim é o primeiro passo para que o Brasil continue sendo referência em café, não só em quantidade, mas também em qualidade, mesmo sob o vai-e-vem do tempo.