Seca extrema na Amazônia: o cacau enfrenta o relógio do clima

Temperaturas superiores a 39 °C e a pior seca em décadas empurraram a colheita de cacau no Xingu para agosto, elevaram custos logísticos, ameaçam a renda de pequenos produtores e podem alterar o preço do chocolate brasileiro doméstico.

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O cacau amazônico, base de chocolates finos e sustento de milhares de famílias, enfrenta desafios crescentes com o avanço da seca e do calor extremo.

A cada safra, os cacaueiros do corredor do Xingu, no Pará, costumavam seguir um roteiro quase imutável: chuvas abundantes entre outubro e maio, florescimento em dezembro e colheita farta a partir de março. Esse calendário, lapidado por gerações de agricultores, acaba de ser virado do avesso.

A prolongada seca de 2024, reconhecida pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) como “situação crítica de escassez hídrica”, estendeu o período de estiagem, reduziu o nível dos rios Xingu e Iriri, isolou comunidades ribeirinhas e fez o termômetro passar dos 39 °C em pleno auge do verão amazônico.

O impacto foi imediato: a colheita, que antes começava em março, agora se arrasta para meados de agosto, obrigando produtores premiados, como os da Gleba Assurini, a recalcular custos, contratar mão de obra extra fora de época e até repensar o destino do fruto que não conseguiu se desenvolver no calor extremo.

Por trás dessa mudança está o avanço das temperaturas e a redução da precipitação, fenômenos confirmados por um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que projeta perda de até 73 % das áreas aptas ao cacau amazônico até 2050 se nada for feito.

O calendário em descompasso

A dinâmica climática típica da região, calor moderado e umidade constante, vem sendo substituída por verões mais longos e secos. Em 2025, a estação chuvosa encurtou quase um mês, enquanto o número de dias acima de 38 °C dobrou em comparação à média da última década. Produtores relatam abortamento de flores, queda prematura das vagens e rachaduras no solo que dificultam o acesso de raízes à água.

Cacau, chocolate
O cacau na Amazônia sofre com a seca prolongada e o calor extremo, que desorganizam o ciclo produtivo e colocam em risco a sustentabilidade da lavoura.

Esse “novo normal” reforça a dependência de previsões meteorológicas de curto prazo e empurra pequenos agricultores para soluções de emergência, como irrigação improvisada por motobomba e sombreamento com lonas agrícolas. Medidas que salvam parte da produção, mas encarecem o quilo da amêndoa, e podem sair do alcance de quem cultiva menos de dez hectares.

Repercussões econômicas e globais

Durante o Chocolat Festival Xingu, em Altamira, dados consolidados mostraram que o Xingu respondeu, em 2024, por 75,86 % do cacau paraense, com produtividade média de 946 kg / ha, quase quatro vezes a registrada na Bahia. Essa concentração torna a região um “termômetro” para o mercado nacional e internacional.

Pontos‑chave do efeito dominó:

  • A Amazônia fornece mais da metade do cacau brasileiro, crucial para chocolates finos e exportações.
  • A seca elevou custos logísticos: rios baixos atrasam balsas e encarecem fretes fluviais.
  • O preço global do cacau subiu 136 % entre julho / 2022 e fevereiro / 2024, segundo a UNCTAD, num reflexo do choque simultâneo no Brasil e na África Ocidental.
  • Indústrias de chocolate alertam para repasse de custos ao consumidor já em 2026.

Na outra ponta da cadeia, empresas internacionais começam a disputar contratos antecipados para garantir a oferta de amêndoas amazônicas, consideradas mais aromáticas. A pressão atrai investimentos, mas também pode estimular desmatamento se políticas de rastreabilidade não forem reforçadas.

Da adaptação local ao futuro do chocolate

A primeira resposta dos agricultores tem sido diversificar o manejo: enxertia de clones mais tolerantes a calor, sombreamento com espécies nativas e implantação de micro‑aspersão durante o florescimento. Esses sistemas agroflorestais reduzem a temperatura do sub‑bosque em até 4 °C e retêm umidade, segundo medições apresentadas pela plataforma SWISSCO durante o festival.

Para além das fazendas, as universidades regionais e instituições como o INPE articulam redes de pesquisa para mapear “zonas de resiliência climática” ao longo da Transamazônica, onde solos profundos e fragmentos de floresta guardam umidade extra.

A estratégia é criar corredores produtivos que unam conservação e renda, demonstrando que preservar a floresta pode ser mais lucrativo, e seguro, do que abrir novas áreas em busca de solos que talvez não resistam ao próximo El Niño.

A saga do cacau amazônico escancara um dilema vivido em toda a agricultura tropical: como manter tradições centenárias diante de um clima que muda mais rápido do que as plantas conseguem se adaptar? No Xingu, a combinação de pesquisa, tecnologia e cooperação entre produtores indica um caminho possível, mas os dados do INPE e da UNCTAD lembram que o relógio corre.