Conheça os lagartos venenosos por trás do remédio Ozempic
Moléculas encontradas na saliva do monstro-de-gila, um lagarto peçonhento da América do Norte, inspiraram o desenvolvimento do Ozempic, remédio revolucionário no combate à obesidade e ao diabetes tipo 2.

Entre os répteis mais antigos e peculiares do planeta, os Helodermatidae se destacam por suas características únicas. Este grupo, que inclui o famoso monstro-de-gila e os chamados dragões-de-contas, é composto por apenas cinco espécies viventes, restritas atualmente ao sudoeste dos Estados Unidos, México e Guatemala. Com aparência robusta, pele coberta por ossículos redondos e comportamento lento, esses lagartos abrigam uma peculiaridade que os tornou estrelas da medicina moderna: sua saliva venenosa.
Esses animais, considerados parentes próximos dos lagartos-monitores, desenvolveram glândulas salivares modificadas capazes de produzir um veneno potente. Seus dentes apresentam ranhuras que conduzem a peçonha, responsável por causar dor intensa, inchaço e outros efeitos colaterais em suas presas. Embora perigosos, esses répteis não representam grande risco aos humanos, sendo os incidentes raros e geralmente relacionados a comportamentos imprudentes.
Foi exatamente neste veneno que cientistas descobriram uma substância chamada Exendin-4, capaz de regular o metabolismo humano. Esse composto deu origem à semaglutida, princípio ativo de remédios como Ozempic, Wegovy e Rybelsus – medicamentos utilizados no tratamento de diabetes tipo 2 e perda de peso.
A ciência que nasceu do veneno
O endocrinologista canadense Daniel Drucker foi um dos pioneiros no estudo da Exendin-4. Em meados dos anos 2000, ele buscava moléculas com efeito duradouro sobre o GLP-1, um hormônio intestinal que regula a glicose e o apetite. A resposta veio de um estudo sobre o monstro-de-gila, cujo veneno contém justamente um composto com essas propriedades. O resultado foi a criação da exenatida, aprovada em 2005 pela FDA (a agência de regulação norte-americana) como tratamento para diabetes tipo 2.

A semaglutida, versão mais recente e potente, tornou-se um verdadeiro fenômeno de mercado. Estima-se que, em 2024, a indústria desses medicamentos tenha movimentado US$ 28 bilhões, com projeção de quase US$ 100 bilhões até 2035. No Brasil, o consumo também é expressivo, refletindo o impacto da obesidade e da diabetes em uma população cada vez mais sedentária.
É importante destacar que esse avanço só foi possível graças à ciência rigorosa: o composto foi isolado, testado por anos e aprovado após extensos ensaios clínicos. Bem diferente do uso irresponsável de venenos brutos em rituais “terapêuticos” que vêm sendo promovidos de forma perigosa.
Lagartos em cativeiro e ameaças à sobrevivência
Apesar de sua importância para a medicina, os monstros-de-gila vivem sob constante ameaça. Considerados “Quase Ameaçados” pela IUCN, enfrentam riscos decorrentes da destruição de seus habitats, mudanças climáticas e captura ilegal para o tráfico de animais exóticos. Um casal desses lagartos hoje vive no Museu Biológico do Instituto Butantan, em São Paulo, após ter sido apreendido no aeroporto de Guarulhos junto com mais de 20 outros répteis.
No Butantan, além de contribuírem para a educação ambiental, os lagartos participam de programas de conservação e pesquisa. Ainda não houve sucesso reprodutivo, mas o museu segue respeitando o ritmo lento desses répteis longevos. Lá, os animais têm acesso a condições controladas, que simulam o ambiente natural, incluindo o processo de brumação – uma espécie de hibernação.
Enquanto isso, a instituição também estuda outras substâncias de origem animal com potencial terapêutico. O veneno da cascavel, por exemplo, mostrou promessas no combate à esclerose múltipla, e substâncias extraídas de sapos, escorpiões e jararacas estão sendo investigadas para tratamentos contra Alzheimer, câncer e regeneração de tecidos.
Justiça para os invisíveis da natureza
Apesar dos bilhões de dólares gerados pelas moléculas inspiradas em seus venenos, os lagartos que contribuíram para essas descobertas não recebem nenhuma forma de compensação. É uma ironia amarga: seres que, por meio da evolução, desenvolveram substâncias capazes de salvar vidas humanas são frequentemente ignorados, perseguidos ou mortos. Seus habitats continuam sendo devastados, e sua existência ameaçada pela expansão urbana e pelas mudanças climáticas.
É hora de mudar isso. A ciência já mostrou que o veneno pode curar. Mas quem vai falar pelos bichos que nos deram essa cura?
Referências da notícia
Nexo Jornal. Os répteis venenosos que dão a matéria-prima do Ozempic. 2025