Hyper-Kamiokande: o detector de neutrinos que promete resolver os maiores mistérios do Universo

Viajando desde os cantos mais violentos do cosmos, invisíveis e difíceis de detectar, os neutrinos podem conter as chaves para a origem, a matéria e o destino do Universo.

Primeira observação de um neutrino em uma câmara de bolhas, em 1970, no Laboratório Nacional Argonne, nos Estados Unidos. Crédito: Departamento de Energia dos Estados Unidos.

No imenso 'zoológico' de partículas elementares, nenhuma é tão enigmática quanto o neutrino, um verdadeiro fantasma cósmico: quase sem massa, sem carga elétrica e tão elusivo que bilhões deles passam por nossos corpos a cada segundo sem deixar rastros.

Cada neutrino detectado é uma mensagem pura vinda do coração de uma estrela ou da explosão de uma supernova, pois são o produto direto dos fenômenos mais energéticos existentes, impossíveis de serem observados por outros meios.

Na década de 1920, os físicos notaram que o decaimento beta não conservava energia, algo impensável para a física. Foi então que Wolfgang Pauli propôs a existência de uma partícula invisível que escapava sem ser detectada, levando consigo a energia perdida.

Por décadas, permaneceu apenas uma ideia teórica até que, em 1956, Frederick Reines e Clyde Cowan conseguiram detectá-la experimentalmente, confirmando a intuição de Pauli. Esse triunfo não apenas preservou uma lei fundamental, como também abriu as portas para um novo ramo da física.

Testando os fotossensores do Hyper-Kamiokande. Crédito: Hiper-K/Universidade de Oviedo.

Mas provar sua existência foi apenas o primeiro passo. O verdadeiro desafio era capturar um número suficiente deles para estudar seus mistérios. Assim começou uma série de experimentos subterrâneos no Japão com detectores gigantes instalados sob montanhas.

O laboratório onde os fantasmas se tornam visíveis

Nas profundezas de uma mina japonesa, a mais de mil metros de profundidade, foi construído o primeiro laboratório dedicado à pesquisa de neutrinos. Na década de 1980, o Observatório Kamiokande realizou a primeira detecção em tempo real de neutrinos solares, abrindo uma nova janela para os processos que mantêm nossa estrela viva.

Em 1987, seu sucessor, o Kamiokande-II, registrou neutrinos de uma supernova distante, marcando a primeira vez que a humanidade observou diretamente o colapso de uma estrela. Essa conquista histórica rendeu a Masatoshi Koshiba o Prêmio Nobel de Física em 2002 e marcou o início de uma nova era na astronomia de partículas.

O próximo salto veio com o Super-Kamiokande, um detector gigantesco que revelou em 1998 que os neutrinos podem mudar de "sabor" à medida que viajam. Esse fenômeno, conhecido como oscilação de neutrinos, implicava que eles possuíam massa, algo proibido pelo Modelo Padrão da física de partículas.

A descoberta foi tão importante que derrubou parte do mais sólido edifício teórico da ciência moderna, rendendo a Takaaki Kajita e Arthur McDonald o Prêmio Nobel de 2015. Mas, além da glória acadêmica, abriu um horizonte de questões fundamentais que somente um experimento ainda maior poderia tentar responder.

Um colosso que caçará os segredos do Universo

O projeto Hyper-Kamiokande (Hyper-K) é o ápice de meio século de pesquisa, oito vezes maior que seu antecessor, e promete ser o instrumento mais sensível já construído. Ele foi escavado em uma caverna de 330.000 metros cúbicos e abrigará dezenas de milhões de litros de água ultrapura.

Sua estrutura parece saída de ficção científica, com um tanque cilíndrico de 73 metros de altura coberto com mais de 40.000 sensores que captarão o tênue brilho azul da luz Cherenkov, aquele "estrondo sônico" luminoso que denuncia a passagem de uma partícula subatômica.

Interior do detector Super-Kamiokande. Crédito: Observatório ICRR Kamioka.

Quando um neutrino colide com um átomo de água, ele gera uma partícula carregada que se move mais rápido que a luz naquele meio, produzindo um cone de luz azul. Esse pequeno flash contém informações sobre a energia e o tipo de neutrino que o originou, uma assinatura que é interpretada com precisão cirúrgica.

Um dos maiores desafios do projeto foi isolar o detector do campo magnético da Terra, o que será alcançado por meio de um sistema de bobinas que geram um campo oposto. Esse feito tecnológico, desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Oviedo, será essencial para atingir a sensibilidade necessária.

O que os neutrinos podem nos revelar

Por que algo existe em vez de nada? Neutrinos podem conter a resposta. O Hyper-K buscará diferenças entre neutrinos e antineutrinos, uma pista crucial para explicar por que a matéria prevaleceu sobre a antimatéria após o Big Bang. Detectar essa assimetria seria uma das maiores conquistas da história da física.

Outra questão crucial é se os neutrinos são suas próprias antipartículas, as chamadas partículas de Majorana. Confirmar isso implicaria que o Universo tem uma memória de si mesmo, uma simetria quebrada que explica sua própria origem. Essa descoberta abriria as portas para uma nova física, além do Modelo Padrão.

O experimento também determinará a massa absoluta dos neutrinos, um parâmetro ainda desconhecido. Saber qual dos três tipos é o mais massivo nos ajudará a entender o papel que essas partículas desempenham na estrutura do cosmos, desde a formação das galáxias até a evolução do universo primordial.

Neutrinos de supernovas nos permitirão espiar o coração de estrelas moribundas. Cada partícula que atingir a Terra será uma cápsula do tempo. E talvez, quando decifrarmos essas mensagens, entenderemos não apenas como o Universo se formou, mas por que existimos nele.