Conhecimentos indígenas e científicos: uma nova fronteira nos estudos do solo

A crescente presença de indígenas nas universidades brasileiras está transformando a ciência, com o reconhecimento e a valorização dos saberes ancestrais, especialmente na área de estudos do solo, através da etnopedologia.

Pesquisador das Ciências do Solo mapeia as características de um tipo de solo, atividade típica da Pedologia no Brasil, que se fortalece pela integração da pesquisa acadêmica com os conhecimentos indígenas. Essa prática é conhecida como Etnopedologia. Crédito: Arquivo Victor Felix
O estudo das características de um tipo de solo, no Brasil, se fortalece pela integração da pesquisa acadêmica com os conhecimentos indígenas. Crédito: Arquivo Victor Felix

Nos últimos anos, o Brasil tem testemunhado uma transformação significativa na ciência nacional, com a presença progressiva de indígenas nas instituições de ensino superior. Entre 2011 e 2021, as matrículas de estudantes indígenas aumentaram em 374%, saltando de 9.764 para 46.252, segundo dados do IBGE e do INEP.

Esse movimento reflete uma mudança importante nas áreas de ecologia e outras ciências, com o reconhecimento crescente dos saberes indígenas, que agora são considerados em pé de igualdade com o conhecimento acadêmico tradicional.

Victor Junior Lima Felix, indígena do povo Potiguara e doutor em Ciências do Solo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), está no centro desse processo. Com uma trajetória acadêmica e de ativismo, ele tem se dedicado a integrar o conhecimento ancestral de sua comunidade com os métodos científicos convencionais.

Em artigo, ele ressalta a importância dessa aliança: "Os saberes indígenas precisam ser reconhecidos pela ciência acadêmica, não apenas como uma fonte de conhecimento, mas como um saber legítimo, fundamental para entender o nosso território e as soluções para os problemas ambientais."

A integração dos saberes indígenas nos estudos do solo

Análise do solo nas terras Potiguara. Crédito: Arquivo Victor Felix
Análise do solo nas terras Potiguara. Crédito: Arquivo Victor Felix

Felix pertence a um dos poucos povos indígenas litorâneos que conseguiu preservar seu território após a invasão europeia. Com o reconhecimento e a homologação de suas terras, ele tem trabalhado ativamente para documentar o profundo conhecimento que sua comunidade possui sobre o solo.

Seu trabalho acadêmico e científico, especialmente na área de pedologia (ciência do solo), busca preencher lacunas existentes nos mapas oficiais do Brasil, que muitas vezes são desatualizados e imprecisos.

Durante sua graduação em Agroecologia, Felix fez sua primeira incursão no estudo da Etnopedologia, área que mescla os saberes tradicionais indígenas com a ciência acadêmica.

"O conhecimento que encontramos na minha comunidade sobre os solos era muito mais detalhado e preciso do que os dados oficiais disponíveis. O que antes era apenas prática do meu povo, agora é reconhecido e documentado pela ciência", explica o pesquisador indígena.

Após sua graduação, Felix enfrentou desafios na academia, principalmente pela falta de orientação para o desenvolvimento de pesquisas que dialogassem com os saberes indígenas. Mesmo assim, ele seguiu em frente, e no mestrado e doutorado, suas pesquisas se aprofundaram, abordando desde a relação do solo com espécies nativas até a recuperação de solos degradados. "Minha busca foi sempre por um espaço onde o conhecimento indígena fosse tratado com o respeito e a seriedade que merece", afirma.

Valorizando o conhecimento tradicional Potiguara

Em 2022, Felix avançou ainda mais, assumindo uma posição na Associação Paraibana dos Produtores de Mel da Baía da Traição e liderando projetos que integraram saberes tradicionais ao desenvolvimento sustentável. Com recursos da FUNAI e parceria com a Embrapa, ele iniciou o mapeamento dos solos de 25 aldeias indígenas, um passo importante para a valorização do conhecimento local.

Sua mais recente conquista é o pós-doutorado no Instituto Serrapilheira, que visa consolidar ainda mais a ciência indígena do solo. Felix é o único pesquisador indígena aprovado no programa, que foca na diversidade de saberes. "Este é um marco, não apenas para minha trajetória, mas para a ciência indígena como um todo", compartilha ele.

Além das questões práticas, Felix e outros pesquisadores indígenas questionam as limitações do termo "etnopedologia". Segundo ele, "não devemos falar de 'etno' como se fosse algo distante da academia, mas sim valorizar as ciências próprias de cada povo, como a ciência Potiguara ou a ciência Guarani."

Essas reflexões estão gerando um novo campo de pesquisa, com o objetivo de integrar, respeitar e aplicar os saberes indígenas nas soluções para os desafios ambientais atuais.

Felix conclui com um apelo: "Nosso trabalho é, antes de tudo, um esforço para unir dois mundos: o tradicional e o acadêmico. Só assim poderemos construir uma ciência mais inclusiva, mais justa e mais capaz de enfrentar a crise ambiental que vivemos." E é justamente essa união entre ciência acadêmica e saberes indígenas que promete ser o caminho para uma nova era nos estudos do solo e na sustentabilidade.

Referências da notícia

The Conversation. Na aliança entre conhecimento acadêmico e saberes indígenas, novos caminhos para os estudos do solo. 2025