Universidade indígena, prestes a sair do papel, representa marco histórico na educação dos povos originários

Iniciativa liderada por indígenas quer criar uma universidade voltada à diversidade cultural, linguística e epistemológica dos povos originários do Brasil. Projeto está sendo finalizado pelo Ministério da Educação e pode ser lançado ainda este ano.

Reunião entre estudantes indígenas na Maloca (Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas da Universidade de Brasília) um dos pontos pioneiros de integração entre o conhecimento acadêmico e os saberes dos povos originários no Brasil: a educação escolar indígena, que já foi um instrumento para o genocídio dos povos, hoje é ferramenta para o trânsito das pessoas por diversos campos de saberes. Crédito: Gabriela Biló/Folhapress
Reunião entre estudantes indígenas na Maloca (Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas da Universidade de Brasília) um dos pontos pioneiros de integração entre o conhecimento acadêmico e os saberes dos povos originários no Brasil. Crédito: Gabriela Biló/Folhapress

Por ocasião do Dia Nacional dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril, ganha destaque um projeto inédito e histórico no país: a criação da primeira universidade indígena brasileira. A proposta está sendo desenvolvida pelo Grupo de Trabalho Nacional da Universidade Indígena, coordenado pelo Ministério da Educação (MEC), com previsão de ser finalizada ainda em 2025. A ideia representa um avanço significativo na luta por uma educação escolar indígena que respeite a diversidade cultural dos mais de 300 povos originários brasileiros.

O professor e pesquisador Eliel Benites, da Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), destaca a importância do projeto. “A universidade indígena será um passo importante numa longa e árdua caminhada rumo a uma educação que respeite verdadeiramente a diversidade cultural dos povos indígenas e não indígenas”, afirmou Benites. Ele é doutor em Geografia e também graduado em licenciaturas interculturais indígenas.

Segundo Benites, a crescente presença de jovens indígenas no ensino superior é resultado da busca por superação de dificuldades históricas, mas também é uma forma de resistência e fortalecimento cultural. Para ele, “é fundamental transitar entre os saberes ocidentais sem encantamento, sem torná-los verdades absolutas. Esse é o verdadeiro diálogo”.

Histórico de apagamento e resistência na educação indígena

A trajetória da educação formal entre os povos indígenas no Brasil é marcada por um histórico de apagamento cultural. Desde a colonização, a escola foi usada como ferramenta para destruir as culturas indígenas, impondo a língua portuguesa, os costumes europeus e a visão de mundo ocidental. “A educação foi, por séculos, uma estratégia de genocídio — linguístico, cultural e até físico”, lembra Benites.

Durante o século 20, predominou um modelo integracionista, que utilizava as línguas indígenas apenas como meio para aprender o português e, assim, abandonar as línguas nativas. “Usava-se minha língua, o Guarani, para ensinar português, com o objetivo de deixar de lado o Guarani”, explicou o pesquisador. Esse modelo, segundo ele, perpetuava preconceitos e gerava traumas profundos nas comunidades indígenas.

Somente com a Constituição de 1988 é que os povos originários passaram a ter seus direitos culturais reconhecidos. A partir daí, iniciou-se um processo de construção de uma educação escolar indígena voltada ao fortalecimento da identidade dos povos, com valorização de suas línguas, culturas e memórias.

Desafios da educação escolar indígena no Brasil

Apesar dos avanços legais e institucionais desde 1988, os desafios para consolidar uma educação verdadeiramente indígena ainda são muitos. Entre os principais entraves estão a ausência de formação adequada de professores indígenas, a dificuldade de introduzir os saberes tradicionais no currículo escolar e a resistência à construção de modelos pedagógicos próprios.

“Hoje, mesmo propondo uma educação diferenciada, o modelo de formação, avaliação e financiamento ainda segue atrelado ao modelo tradicional, ocidental”, observa Benites. Para ele, é necessário reformular estruturas dentro do próprio MEC para que se possa efetivar uma prática pedagógica intercultural e com respeito aos contextos locais.

Outro ponto crítico é a diversidade entre os povos indígenas. Segundo o IBGE, há no Brasil pelo menos 305 povos, que falam 274 línguas diferentes. “Cada povo tem sua história, cultura e memória. Uma política pública uniforme não dá conta dessa diversidade”, afirmou o pesquisador.

A universidade indígena como território de diálogo

A proposta da universidade indígena surge como um espaço estratégico para superar esses desafios. Com base no conceito de “território de diálogo”, a instituição será desenhada de maneira intercultural, em rede e descentralizada, conectando-se a diferentes territórios, povos e biomas. Ela não terá um único campus fixo, mas estará distribuída por diversos locais do país, conforme as realidades regionais e culturais.

A universidade deve oferecer cursos específicos ou com currículos diferenciados, valorizando tanto os saberes acadêmicos quanto os tradicionais. Além disso, deverá fortalecer políticas linguísticas, preservar patrimônios culturais e funcionar como ponto de articulação entre saberes.

“Devemos construir novos campos de conhecimento, nos quais o saber ocidental não seja hegemônico, mas parte do processo”, destacou Benites.

Para o professor, esse novo modelo educacional exigirá também mudanças metodológicas significativas por parte dos docentes. “O conceito de território, por exemplo, é diferente. No ocidente, é domínio. Para nós, indígenas, é uma rede viva de conexões entre seres humanos e elementos naturais”, explicou.

Perspectivas e próximos passos para a educação indígena

Consultas aos povos indígenas já foram realizadas no início do processo de concepção da universidade, e o projeto está sendo finalizado com base nesses diálogos. A expectativa é que a proposta avance ainda em 2025, tornando-se uma ferramenta fundamental para consolidar a autonomia educacional dos povos indígenas.

Benites acredita que essa geração tem a missão de construir um novo paradigma educacional, baseado no respeito mútuo e na valorização da diversidade epistêmica. “Estamos trilhando um caminho longo e tortuoso, mas necessário. A universidade indígena será uma ferramenta estratégica para garantir um futuro em que o diálogo entre os saberes seja uma realidade concreta”, concluiu.

Referência da notícia

Prestes a sair do papel, universidade indígena será passo importante na educação escolar dos povos originários. 18 de abril, 2025. Eliel Benites.