Degelo, oxigênio e vida: como o relógio dos astros revela os primeiros passos da evolução animal

Pesquisadores chineses e europeus criaram uma nova linha do tempo para os primeiros passos da vida animal, usando padrões astronômicos registrados em rochas. O estudo revela conexões entre degelo, oxigênio e evolução biológica.

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Impressões fósseis de organismos ediacaranos emergem nas rochas costeiras, revelando vestígios da vida multicelular primitiva que floresceu há mais de 580 milhões de anos.

No fundo do tempo geológico, muito antes dos dinossauros ou mesmo das primeiras plantas terrestres, nosso planeta viveu uma fase de transformações radicais. Entre 635 e 580 milhões de anos atrás, a Terra saiu de uma era de gelo global, conhecida como “Terra Bola de Neve”, para se tornar um mundo mais quente, úmido e com os primeiros sinais de vida complexa.

Esse período, chamado de Ediacarano, sempre intrigou os cientistas: o que, afinal, desencadeou tamanha mudança ambiental e o surgimento de organismos multicelulares?

Agora, pesquisadores de universidades chinesas e europeias deram um passo decisivo para responder essa pergunta, usando o próprio “relógio” do sistema solar.

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Depressões deixadas por Dickinsonia, organismo da biota de Ediacara, mostram um marco posterior da evolução iniciada no início do Ediacarano.

Cientistas da Universidade de Tecnologia de Chengdu, na China, em parceria com a Universidade de Liège, na Bélgica, publicaram um estudo inovador na Nature Communications. Eles reconstruíram, com alta precisão, a linha do tempo dos principais eventos do início do Ediacarano. O grupo analisou sedimentos antigos do sul da China e os alinhou com os ciclos orbitais da Terra, como a excentricidade, obliquidade e precessão. Esse método, conhecido como astrocronologia, permitiu datar com mais confiança momentos cruciais da evolução da vida.

Uma nova forma de contar o tempo da Terra

Tradicionalmente, os geólogos utilizam fósseis e camadas de rochas para determinar a idade de certos eventos. Mas quando se fala de tempos tão remotos, como há 600 milhões de anos, os fósseis são raros e os métodos de datação apresentam margens de erro amplas. É aí que entra a astrocronologia: ao identificar padrões repetitivos em rochas causados pelas oscilações do eixo da Terra e sua órbita em torno do Sol, os cientistas podem calibrar os registros geológicos com grande precisão.

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Marcas deixadas por Dickinsonia em tapetes marinhos revelam vestígios da vida multicelular que emergiu após as transformações do Ediacarano inicial.

Os ciclos astronômicos deixam marcas nos sedimentos, alterando a química e o magnetismo das rochas. Com base em três perfurações no sul da China, os cientistas cruzaram esses dados com padrões orbitais da Terra. Assim, construíram uma linha do tempo de quase 58 milhões de anos, detalhando eventos como o fim da glaciação Marinoana, a oxigenação dos oceanos e o surgimento da vida complexa.

Quando o gelo derrete, a vida floresce

Uma das descobertas mais impactantes do estudo foi a confirmação de que o fim da glaciação Marinoana foi extremamente rápido em termos geológicos, durando entre 1 e 2 milhões de anos. Esse degelo repentino teria liberado enormes quantidades de dióxido de carbono na atmosfera, aquecendo o planeta e reativando os ciclos de água e nutrientes nos oceanos.

O estudo também destacou três grandes eventos de perturbação química nos oceanos, conhecidos como excursões isotópicas negativas, que coincidiram com momentos de oxigenação e surgimento de novos organismos. Entre os achados importantes:

  • O primeiro evento (EN1) ocorreu logo após o degelo, talvez ligado à liberação de metano congelado nos oceanos.
  • O segundo evento (WANCE) marcou um período de oxigenação regional, exclusivo da China Meridional.
  • O terceiro evento (EN2) foi global, ocorrendo pouco antes da glaciação de Gaskiers, e associado ao surgimento de formas de vida multicelulares mais complexas.

Esses eventos, ligados à química do carbono e à presença de oxigênio nos mares, parecem ter sido gatilhos cruciais para a explosão de formas de vida que viriam a dominar o planeta nos milhões de anos seguintes.

E o Brasil nessa história?

Embora feito na China, o estudo tem relevância para o Brasil. Formações como o Grupo Bambuí e a Formação Sete Lagoas guardam registros da mesma época e poderiam ser analisadas com métodos semelhantes para refinar nossa história geológica.

Entender como os ciclos astronômicos moldaram o clima e a vida no passado também ajuda a pensar o futuro. Se mudanças naturais no eixo da Terra causaram transformações globais, o que dizer das alterações provocadas pelo ser humano?

Referência da notícia

Astronomically calibrating early Ediacaran evolution. 28 de março, 2025. Zhang, T., Ma, C., Li, Y. et al.